A Repressão do Heroísmo
- Haniel Cal

- há 6 dias
- 11 min de leitura
Como a sociedade mata a inocência em prol da conformidade.

"A culpa humana é resultado de uma vida desperdiçada, a vida não-vivida em nós." — Ernest Becker, A Negação da Morte.
Todo ser humano tem uma "farpa na mente". Uma sensação de que algo está profundamente errado. Uma ânsia. Um desespero por mais.
Um sentimento de que os dias passam rápido demais. Que a satisfação, felicidade e o sucesso estão sempre virando a esquina.
Um sentimento de que estamos vivendo a vida no piloto-automático — mas não no banco do motorista.
Diante do caos da rotina, da essência passageira da vida e da ânsia pelo belo e eterno — a vida não nos apresenta nenhum manual. Nenhuma instrução, objetivo ou passo-a-passo.
O universo parece não nos oferecer nenhuma resposta além de: silêncio.
E esse buraco-negro, no centro do ser humano, devora tudo a seu alcance. Lentamente transformando essa "fome" por algo mais, em ansiedade de algo que não conseguimos explicar.
Essa é a farpa. Mas essa farpa nem sempre esteve lá.
Olhe para uma criança. Toda criança é um herói em potencial.
Observe bem as ações desses "mini-homens", antes de dizermos quem eles deveriam ser.
Crianças não tem filtro. Não tem vergonha. Não tem medo de exigir atenção. Elas querem existir e querem que você saiba que eles existem.
"Você fez isso pra ele, mas não pra mim!" "Você deu aquilo pra ela, mas não pra mim!" "Olha! Eu sou o Batman!", "Olha pra mim, eu tô chorando!"
A maioria dos adultos olha para a criança e diz: "Que criança criativa e cheia de vida."
Mas no fundo, quando nos deparamos com a nossa própria vida, não podemos evitar olhar para essa situação com uma certa amargura escondida — "Eu espero que ela nunca cresça." e "Mal sabe ela que a vida não é assim."
Uma sensação quase adâmica de um paraíso do qual fomos expulsos e não conseguimos mais acessar.
A inveja da ingenuidade perdida.
Mas a criança não é iludida. Nós fomos. Afinal, ela é o herói.
O heroísmo é a expressão mais genuína da necessidade humana de se destacar. De se sentir único. De sentir que tem controle de toda a vida à sua volta.
A criança não brinca de ser um advogado estressado com uma mesa cheia de papéis.
Ou de acordar cinco horas da manhã para ir ao trabalho. Ter uma hora de almoço. Trabalhar oito horas no total. Voltar para casa com um trânsito de uma hora. Para finalmente comer, se distrair e dormir — não.
Para ela, dia e noite são apenas nomes. Tempo, comida e vida são infinitos. A criança não consegue realmente compreender o que significa "não estar viva" — é tudo que ela conhece.
A criança imagina conquistar mundos inteiros. Explorar terras nunca vistas. Ser um super-soldado com poderes. Voar.
Ela imagina ser alguém.
Até que a sociedade a domestica. "É ótimo brincar, mas você tem que focar nessas coisas reais", "só pode brincar depoisde estudar!", "estudar é muito importante pra você ser alguém".
Então ensinamos as crianças a se comportarem. Fazerem fila para esperarem sua vez. A levantar a mão pra falar. A pedir para ir ao banheiro. Não chamar muita atenção. A ser "humilde". A "ficar no seu quadrado" — como se de alguma forma isso significasse "estudar".
E então, a fraqueza do herói não é criptonita. Não vem em formato de um mineral verde e radioativo.
A fraqueza do herói vem vestida de uniformes. Repetições, verdades absolutas e conformidade.
A criptonita do herói-humano, é a repressão.
O antropólogo, Ernest Becker passou a vida estudando a psicologia humana e chegou numa conclusão brutal em sua obra "A Negação da Morte"—que ironicamente escrita enquanto batalhava câncer e foi sua última publicação antes de morrer, um ano depois.
Becker argumenta que nós vivemos presos em dois terrores essenciais:
O Terror da Morte: "O ser humano é uma minhoca, e comida de minhocas". O seu corpo é frágil. Quebradiço. Delicado. Um dia você vai morrer. Apodrecer. E tudo que você fez na sua vida, todos que amou vão desaparecer e virar adubo.
O Terror da Insignificância: O terror de sermos esquecidos. De que, apesar do maior dos esforços, não recebemos nenhuma confirmação de que estamos no caminho certo ou errado. O terror de uma existência que não apresenta nenhuma solução clara para a falta de sentido e o buraco-negro no peito do homem.
Para lidar com esse terror, criamos "sistemas imortais" como culturas, religiões, heróis e ideologias, objetivos, conquistas... Buscando uma transcendência e um sentido para escapar da nossa mortalidade e insignificância.
Em essência, Becker argumenta que todo o sofrimento, neurose humana e grande parte das nossas realizações em vida são tentativas de escapar a dura realidade de que somos criaturas mortais, frágeis e potencialmente, insignificantes.
E essa é a essência primordial, à qual a criança reage, ainda que inconscientemente. E por isso ela prefere se ver como o herói.
Mas quando crescemos, nos socializamos e nos educamos, ainda mantemos o constante terror e negação da nossa mortalidade.
Apenas fazemos isso por outros meios, de forma automática e inconsciente.
Becker argumenta que vivemos como se fôssemos imortais não apenas porque estamos distraídos, mas porque nos conformamos a mitos culturais que nos prometem imortalidade simbólica.
Somos ensinados a acreditar em nações, religiões, legados ou conquistas que nos sobreviverão.
Então, quando não paramos para pensar — quando apenas seguimos a multidão, perseguimos status ou adotamos um "sistema" — estamos inconscientemente negando a morte. Não é apenas preguiça ou distração; é um mecanismo de defesa.
Mas no momento em que paramos e pensamos? É quando o medo bate — e também, potencialmente, a chance de viver autenticamente.
"Tudo que nos dá nosso senso de identidade foi construído em nós a partir do mundo externo. Temos um nome que não pudemos escolher. Uma família que não pudemos selecionar. Falamos uma língua que não ajudamos a desenvolver. Escolhemos empregos que não criamos. Recebemos títulos que não criamos. E assim por diante… E então, o animal humano não tem senso de autoridade desde o nascimento. E, se não questionado, continua a se sentir impotente até o fim da vida."
De qualquer maneira, todos sentimos o terror iminente da morte. E, a menos que intencionalmente questionado, inconscientemente criamos "ilusões heróicas" e, ao mesmo tempo, reprimimos o heroísmo através delas.
Você, como a criança, quer ser visto. Quer ser extraordinário. Deixar sua marca no mundo. Sentir que viveu, amou, e que isso importa. Sentir-se visto.
Mas tem medo de tentar—ou melhor, de ser visto falhando ao tentar.
Porque isso só confirma o seu maior medo: você é frágil. Você erra. É mortal. Você está perdido. Você não sabe o que está fazendo...
E então nos contentamos com um meio-termo quase sádico:
Buscas por pertencimento e status
Seguir Pseudo-heróis
Buscamos formas de heroísmo na busca por pertencimento em grupos: religião, política, preferências musicais, artísticas, classistas...
E por formas de status: Um cargo, um diploma, uma promoção, dinheiro, carros, títulos, reconhecimento...
Porque em grupos e com status, sentimos que importamos. São sistemas que automaticamente nos recompensam com algum tipo de valor.
O suficiente para não desistir completamente. Mas não o suficiente para realmente nos destacarmos ou nos sentirmos "realizados".
Ou nos voltamos para heróis externos: ídolos, políticos, artistas, celebridades, líderes religiosos, empreendedores, gênios...
E nos contentamos em nos associar com eles, como se isso nos trouxesse um pouco mais de sentido. Um vislumbre do potencial não-vivido de nossas vidas. Um vislumbre do Éden.
Esperando que uma gota do suor divino deles, talvez, caia em nós.
E quando alguém dá um passo à frente — que demonstre verdadeiro heroísmo — nós o tememos, até o rejeitamos, tiramos sarro, porque pessoas assim nos forçam a ver nossa própria covardia.
O heroísmo exige coragem diante da morte, e é exatamente isso que somos programados para evitar.
Então a mediocridade é a fuga, o medo do heroísmo é a defesa, e a raiz? O terror profundo e não dito de ser nada no final.
Mas estas são apenas formas de repressão, ou de heroísmo neurótico.
Um escape, inconsciente, frenético, quase desesperado, por qualquer migalha de significado.
E então você constrói sua vida em cima dessas migalhas, seu monumento à imortalidade:
Uma carreira de 30 anos numa empresa
Uma família que "deu certo"
Uma casa própria
Um carro financiado
Algumas viagens pra postar no Instagram
E você se convence: "Eu importo. Minha vida tem significado."
Mas no fundo você, talvez quando confrontado com a morte de alguém próximo ou com o silêncio total, ainda sente seu coração acelerar sem motivo.
Um calor subindo. Uma vontade de gritar ou sair correndo. De rasgar a própria pele e sair de dentro de si mesmo. Ou cantar o canto da cigarra e explodir.
Nenhuma dessas buscas é necessariamente ruim. Então, por que continuamos sentindo esse medo constante de nos aproximar da beira do abismo?
Essa sensação constante de um terror de cair por acidente ou pior, querer se jogar?
Como escapamos do terror da morte? Como construímos coisas que signifiquem alguma coisa? Como paramos de negar a nossa própria mortalidade?
Você não pode escapar. Você não para de negar a morte. Você continua negando, mas como o herói-falho — a criatura se torna um herói finito.
O problema, argumenta Becker, não é negarmos a morte. Ou criarmos projetos e sistemas de imortalidade.
O problema é quando apenas aceitamos e nos conformamos com esses sistemas e deixamos eles nos definirem de forma inconsciente.
O problema é apenas seguir as ordens, conformar e ficar na fila esperando a sua vez, somente porque te disseram que esse era o correto a se fazer.
O problema é olhar para a nossa fragilidade, natureza efêmera, nossas falhas, nossa vontade de pertencer e sentir que importamos e tentar esconder isso.
Queremos parecer perfeitos. Completos. Imaculados. Como se soubéssemos exatamente o que estamos fazendo. Quando o próprio universo e nossa natureza é caótica, finita e feita de comida para minhocas.
Nós queremos que o herói da nossa história seja perfeito, imparável, invencível, quase divino. Por isso construímos ídolos, mitos e narrativas.
Esses pseudo-heróis mostram o quanto nós tememos olharmos para dentro e encararmos nossa própria mortalidade e fragilidade.
Mas o herói-autêntico, não é o que nunca teme. O que nunca falha. O que nunca perde.
O herói-autêntico, é o herói que age apesar de temer. Apesar de suas limitações. Apesar das suas derrotas. Apesar da sua natureza passageira. Apesar de ser uma criatura estranha e suja.
Esse é o caminho do anti-herói. Do rebelde. Do desajustado. Do errante.
Quando entramos na arena e encaramos a morte—se cessamos de mentir para nós mesmos e de desviar os olhos perante o abismo—podemos finalmente parar de fingir sermos perfeitos ou que temos resolvido, e então, começar a viver com a real coragem de quem prefere arriscar morrer tentando do que arriscar viver num constante estado de "quase-vida".
Sim, ainda são tentativas de evitar a morte. Mas o heroísmo autêntico está em reconhecer o paradoxo de aceitar sua própria mortalidade e negá-la todos os dias.
Mas escolhendo por si mesmo como criar significado diante desse fato e não nos contentar em "pegar emprestado" um resquício inconsciente de significado da sociedade, religiosidade, ideologia, status ou grupos — estes são apenas ecos, são apenas a repressão do heroísmo-autêntico e a abdicação da sua liberdade de escolher seu projeto imortal.
De escolher como você quer evitar a morte. Não por desespero. Não por nojo de encarar o horrendo.
Mas para poder, a partir dessa decisão consciente, viver mais inteiramente, amar mais profundamente, e criar impacto e independência, mais ousadamente, justamente porque somos finitos.
Não é sobre a ansiedade de temer a morte. É sobre deixar ela revelar o que realmente importa. E inspirar o que realmente sentimos ser real.
Não porque te disseram. Não porque você tira seu senso de "eu" ou seu valor disso. Mas porque você reconhece a realidade com seus próprios olhos.
A busca cega por aprovação, o vício em validação externa, drogas, distrações, status, competições vazias e necessidade neurótica de "provar seu valor" são, como Becker coloca, "Um grito por glória tão irreflexivo quanto o uivo de um cachorro."
Talvez estejamos todos perdidos. Talvez estejamos todos sem saber ao certo qual o próximo passo. Talvez realmente sejam "da rua até o topo do mundo".
Talvez.
Ninguém veio com um manual afinal.
Mas aceitar nossas próprias falhas, mortalidade e estranheza nos dá permissão. De tentar. De buscar. De gritar e não se sentir "cringe" ou "tentando ser alguém que não somos".
Essas são apenas frases que inventamos para evitar olharmos para nossos próprios impulsos heróicos, dúvidas e medos, e nos esconder em nossa covardice de não criar um mundo diferente porque temos "vergonha de ser vistos como pretensiosos".
Almas tímidas.
Almas que não serão lembradas.
O próprio terror da morte, quando não explorado, te transforma no que você mais teme: um saco de órgãos, líquidos e carne inerte e deteriorando.
Eu sei que parece uma imagem bruta. Nojenta até. Mas não devemos desviar o olhar. Devemos fitar o abismo de Nietzsche nos olhos. Por mais tenebroso que seja a vista.
Esse não é meu texto mais "otimista". Mas com certeza é a base pela qual todo o resto foi sendo construído na minha vida.
Estranhamente, encarar minha própria mortalidade—passar a alguns centímetros dela— reconhecer a fragilidade do meu corpo, me deu no mínimo consciência intencional e nos dias bons até sentido.
Estranhamente minhas escritas, textos e reflexões de anos parecem sempre se conectar em algum ponto—minha primeira tatuagem feita em 2021: memento mori. "Lembre-se que és mortal" ou "Lembre-se da morte". Serve quase como um lembrete diário ou, talvez, até uma pista sutil de um futuro em que eu mergulharia mais profundamente em temas como mortalidade, impacto e propósito.
E pra finalizar, uma frase e um texto que acredito que resumem bem o espírito desse "vômito espontâneo pseudo-intelectual desnecessariamente denso" que escrevi hoje:
"A energia súbita, incalculável e poderosa, que jorra das profundezas ocultas, é controlada por uma vontade que serve a uma visão. A Visão que vê no caos a potencialidade de forma."
—Não lembro de onde anotei essa frase em Janeiro de 2024, deve ter sido de algum audiolivro do canal Master Key Society. Mas serviu como base pro lançamento e comunicação da primeira coleção da Absurd: "Cause & Effect".
E por fim, o meu texto favorito—até o momento—que reflete bem a coragem dos que decidem olhar o abismo nos olhos, sentir o terror da morte, a ansiedade da falta de sentido e mesmo assim escolhem agir sem depender de nenhum destino, aprovação externa, permissão ou instrução:
"Não é o crítico que importa; nem o homem que aponta como o bravo homem tropeça, ou como o realizador de feitos poderia ter agido melhor. O crédito, na realidade, pertence ao homem que está na arena, cujo rosto está sujo por poeira, suor e sangue; que se esforça valorosamente; que erra, que falha repetidas vezes, porque não há esforço sem erro e imperfeição; mas que verdadeiramente se esforça para realizar os feitos; que experiencia grandes entusiasmos, e grandes devoções; que se entrega a uma causa digna; que na melhor das hipóteses conhece, no final, o triunfo da grande conquista, e que na pior, se falhar, pelo menos falha enquanto ousa grandemente, de modo que seu lugar nunca será entre aquelas almas frias e tímidas que não conhecem nem vitória nem derrota."
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